As Madeleines de Proust

Em um dia qualquer, ao entrar na cozinha de alguém, você sente um cheirinho incrível de algo sendo assado. Você ainda nem decodificou direito que o que é, mas algo está se passando na sua cabeça: “eu conheço esse cheiro!” diz uma voz interior. Quase ao mesmo tempo você reconhece que aquele cheiro delicioso é do bolo que sua avó fazia, lá no interior de Minas! Nem é preciso fechar os olhos que as imagens estão todas lá: é de noite, primos e tios na casa da avó mineira. O fogão está aceso, faz frio, todos estão na cozinha. A mesa com as quitandas está posta, o café sendo coado em coador de pano e a avó tirando do forno aquele bolo, exatamente esse mesmo bolo, bolo de fubá, Você quase pode sentir a textura do bolo na boca, o calor da cozinha, os risos dos primos, a voz estridente da tia, a avó ralhando com os pirralhos para não comerem o bolo todo ainda quente. Em questão de segundos o cheirinho daquele bolo fez você voltar ao passado, rever em detalhes quase cinematográficos os momentos em que aquele bolo foi consumido.

Memórias de comidas são uma das coisas mais incríveis que nosso cérebro faz conosco e esse fenômeno tem nome e sobrenome e é muito estudado pelos psicólogos e neurocientistas: é a memória involuntária. Involuntária porque não estávamos pensando na casa da avó nem em nenhuma daquelas cenas que nos passaram pela cabeça, mas de repente o aroma daquele bolo trouxe à tona todas aquelas memórias. Há discussões entre os especialistas se é realmente verdade ou não que não havíamos pensado naquelas coisas antes, mas o que se sabe de fato é que o sabor e principalmente o odor da comida nos remetem a certos momentos em que consumimos aqueles alimentos.

Mais interessante ainda é que os próprios especialistas deram como nome a este efeito do odor e sabor em desencadear memórias o nome de EFEITO PROUST, em homenagem ao grande escritor francês Marcel Proust. Proust, na sua monumental obra Em Busca do Tempo Perdido (A la Recherche du Temps Perdu), em 7 volumes, conta como o ato de molhar uma madeleine em uma xícara de chá fez com que a personagem se recordasse de todo seu passado. As personagens e locais que Proust descreve não são autobiográficos: são a somatória das muitas vivências pessoais do autor. A própria cidadezinha de Combray, aonde começa o romance, é a soma das lembranças das várias cidadezinhas francesas aonde Proust passou parte da sua infância. Proust era obcecado pela memória e pelo tempo que passa. O número de menções explícitas e implícitas sobre esse tema aparece 1 vez em cada 3 páginas do longo romance. Vejamos então como começa a longa busca de Proust pelo tempo perdido:

Fazia já muitos anos que, de Combray, tudo que não fosse o teatro e o drama do meu deitar não existia mais para mim, quando num dia de inverno, chegando eu em casa, minha mãe, vendo-me com frio, propôs que tomasse, contra meus hábitos, um pouco de chá. A princípio recusei e, nem sei bem porque, acabei aceitando. Ela então mandou buscar um desses biscoitos curtos e rechonchudos chamados madeleines, que parecem ter sido moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago. E logo, maquinalmente, acabrunhado pelo dia tristonho e a perspectiva de um dia seguinte igualmente sombrio, levei à boca uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço da madeleine. Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a noção de sua causa. Rapidamente se me tornaram indiferentes as vicissitudes da minha vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou antes, essa essência não estava em mim, ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do biscoito, mas ultrapassava-o infinitivamente, não deveria ser da mesma espécie. De onde vinha? Que significaria? Onde apreendê-Ia? Bebi um segundo gole no qual não achei nada além do que no primeiro, um terceiro que me trouxe um tanto menos que o segundo. É tempo de parar, o dom da bebida parece diminuir.

(…)

Quero tentar fazê-lo reaparecer. Pelo pensamento, retrocedo ao instante em que tomei a primeira colherada de chá, e encontro a mesma situação, sem qualquer luz nova. Peço a meu espírito mais um esforço, que me traga ainda uma vez a sensação que escapa.

(…)

Certamente, o que palpita desse modo bem dentro de mim, deve ser a imagem, a lembrança visual, que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até mim.

(…)

E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedacinho de madeleine que minha tia Léonie me dava aos domingos pela manhã em Combray (porque nesse dia eu não saía antes da hora da missa), quando ia lhe dar bom-dia no seu quarto, depois de mergulhá-lo em sua infusão de chá ou de tília. A vista do pequeno biscoito não me recordara coisa alguma antes que o tivesse provado; talvez porque, tendo-o visto desde então, sem comer, nas prateleiras das confeitarias, sua imagem havia deixado aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; talvez porque, dessas lembranças abandonadas há tanto fora da memória, nada sobrevivesse, tudo se houvesse desagregado; as formas e também a da pequena conchinha de confeitaria, tão gordamente sensual sob as suas estrias severas e devotas tinham sido abolidas, ou, atormentadas, haviam perdido a força de expansão que lhes teria permitido alcançar a consciência. Mas, quando nada subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o aroma e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, chamando-se, ouvindo, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, levando sem se submeterem, sobre suas gotículas quase impalpáveis, o imenso edifício das recordações. E logo que reconheci o gosto do pedaço da madeleine mergulhado no chá que me dava minha tia (embora não soubesse ainda e devesse deixar para bem mais tarde a descoberta de por que essa lembrança me fazia tão feliz), logo a velha casa cinzenta que dava para a rua, onde estava o quarto dela, veio como um cenário de teatro se colar ao pequeno pavilhão, que dava para o jardim, construído pela família nos fundos (o lanço truncado que era o único que recordara até então); e com a casa, a cidade, da manhã à noite e em todos os tempos, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas aonde eu ia correr, os caminhos por onde se passeava quando fazia bom tempo. E como nesse jogo em que os japoneses se divertem mergulhando numa bacia de porcelana cheia de água pequeninos pedaços de papel até então indistintos que, mal são mergulhados, se estiram, se contorcem, se colorem, se diferenciam, tornando-se flores, casas, pessoas consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências, e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá.

No Caminho de Swann, 1913

(As frases foram sublinhadas pela autora e não estão assim na obra original)

Nós, meros mortais, talvez nunca vamos conseguir descrever de forma tão poética quanto Marcel Proust as nossas lembranças despertadas pelos odores e sabores de certas comidas. Mas seguramente nossas lembranças serão tão vívidas e fortes quanto as que descreveu Proust.

Mas deve haver uma razão científica para isso, não?  Em 2012 os pesquisadores Lombion, Bechetoille, Nezelof, e  Millot (2012) propuseram que as memórias involuntárias podem ser desencadeadas pelos odores (mais que pelos sabores) porque o nosso sistema olfativo situa-se muito perto dos sistemas que processam as emoções e memória a longo termo. Estando muito próximos uns dos outros no nosso cérebro, esses centros de processamento são ativados simultaneamente pelos odores e é nesses casos que lembramos das situações, pessoas, objetos e locais que estavam associadas com aquele odor no passado.

É como se os odores ficassem ‘presos no cérebro’, só esperando o momento de voltarem à tona. Assim, parece que lembramos mais dos odores que dos sons ou imagens. Há inclusive uma teoria que diz que o olfato foi, antes dos demais sentidos, o que nos permitiu sobreviver e evoluir até nos tornamos humanos. Segundo essa teoria, teria sido o olfato o sentido que nos permitiu identificar quem fazia parte do grupo, escolher parceiros para o acasalamento mas sobretudo quais alimentos eram perigosos e quais podiam ser consumidos. A lembrança desses odores permitiria evitar os alimentos venenosos.

Outro ponto interessante é que quando falamos em ‘sabor’ estamos falando na verdade em odores associados aos sabores básicos. Na boca só conseguimos identificar 5 sabores: doce, amargo, azedo, salgado e umami. Esse fato fica bastante claro quando estamos completamente resfriados ou gripados, com o nariz bloqueado: não sentimos o gosto da comida! Quem realmente cria a sensação de sabor é o sistema olfativo e por isso o odor é tão importante.

Muitas vezes as lembranças associadas à comida são tão fortes que nem é preciso comer ou sentir o cheirinho da comida para que essas lembranças voltem à tona: basta que aquela comida especial seja mencionada e lá vêm as lembranças nos rondar. Todos nós já tivemos alguma vez esse tipo de experiência, em que só a menção de uma comida ou ver uma foto atraente nos faz salivar. É quase como se pudéssemos ‘sentir a comida’ dentro de nossas cabeças e com isso as memórias associadas também voltam à tona. Pesquisadores do MIT (EUA) estão estudando esse fenômeno e parece que ele tem a ver com sinapse entre neurônios e não é só imaginação nossa, isso realmente acontece;

Não só os odores das comidas e bebidas provocam essas memórias involuntárias, é claro. Eu por exemplo, ao sentir cheiro de terra molhada em um temporal de verão me lembro da minha infância, da cozinha de casa … e da minha mãe fazendo bolinho de chuva! Nesse caso não é o cheiro do bolinho de chuva que me faz lembrar dos temporais mas o cheiro da terra sendo encharcada pela água dos temporais que me remete às tardes de verão e aos bolinhos de chuva. Que saudades …

Mas mesmo depois de descobrir a parte científica desses mecanismos, o encanto e a magia da comida não se perderam para mim. Ao contrário. Hoje vejo a comida como algo ainda mais especial. Comida cria memórias, cria vínculos com nosso passado e com outras pessoas. E nessas horas meu lado poético fala mais alto que o lado cartesiano: comida é pura magia. Como a varinha das fadas, a comida nos transporta a outros tempos e lugares, nos faz viajar, cruzar dimensões, reencontrar nossos mortos. E é por isso que passei a comer com muito mais atenção: devagar, cuidando para não perder nenhum detalhe do que se passa ao meu redor e, especialmente, prestando atenção nas pessoas. Quem sabe um dia sejam essasas únicas lembranças que restarão desses seres amados.

E para que a mágica aconteça realmente, não só comigo, mas com todos vocês, deixo aqui uma pergunta: qual é a comida que só de pensar nela vocês voltam a ter 8 anos? Que memórias lhes traz tal comida? Que pessoas, locais, sons e objetos fazem parte dessas lembranças? Vocês podem nos contar? Espero ansiosamente os relatos de vocês!

E agora vou comer mais umas madeleines com chá! Servidos?

Autora: Sandra Mian, Engenheira de alimentos

2 comentários em “As Madeleines de Proust”

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