Grecia Clássica, Bárbaros e Pitagóricos

Grécia Clássica, Bárbaros e Pitagóricos 

Sou grande utilizadora das mídias sociais e como boa parte dos utilizadores eu converso com ‘perfis’ que não conheço pessoalmente. É uma oportunidade incrível essa que temos hoje de conversar com tantas pessoas distintas e com isso aprender muito sobre como elas pensam. Eu estava comentando em uma postagem sobre consumo de carnes e a maioria dos participantes era vegetariano ou vegano. Eu comentei que já tinha sido vegetariana (ovo-lacto-vegetariana na maioria do tempo e com algum consumo de peixes e frutos do mar em poucas ocasiões) mas que voltei a consumir carnes por vários motivos. Mas antes mesmo que pudesse explicar por que voltei a consumir carne – sou hoje o que se chama de FLEXITARIAN, consumo carnes, mas só esporadicamente – fui literalmente atacada por várias pessoas. “BÁRBARA, VOCÊ É BÁRBARA” foi um dos muitos comentários que li. Bárbara … por consumir carne? E então eu me dei conta que estava ouvindo algo que já tinha sido dito há muito tempo, na Grécia Antiga e Clássica! Novamente eu via o exemplo da História se repetindo só que não mais com o adjetivo ‘bárbaro’ sendo usado para o Gigante Polifemo, mas para  a minha própria pessoa! 

Me explico: há uma passagem muito interessante na Odisseia, em que Ulisses e seus companheiros chegam a uma ilha habitada por um gigante, o Gigante Polifemo, que só tem um olho no meio da testa. Polifemo alimenta-se de queijos, mas também de duas coisas que para os gregos daquela época eram consideradas símbolos máximos do barbarismo: leite puro e carne humana. Vejamos a passagem: 

Vista ingrata. Imolando, aceso o fogo,

Do lacticínio come-se, e aguardamos.

     Ei-lo, de lenha para a ceia, à porta

A grossa atira estrepitosa carga;

Tremendo no interior nos ocultamos.

 À espelunca recolhe as gordas fêmeas

Para ordenhar, de fora tendo os machos

No amplo recinto, bodes e carneiros;

Depois a entrada fecha, levantando

Rocha tal, que mover nem poderiam

 Vinte dous carroções de quatro rodas.

Sentado, ovelhas e balantes cabras

Em ordem munge, e às mães submete as crias:

Porções do leite coalha e aperta em fôrmas;

Guarda metade, que ceando bebe.

Tudo aviado e em cobro, atiça o lume,

E dá conosco e diz: “Quem sois vós outros?

Navegais por negócio, ou ruins piratas

Os mares infestais, expondo as vidas

Para infortúnio e dano de estrangeiros?”

Ei-lo, sevo e em silêncio, a dous agarra,

No chão como uns cãezinhos os machuca,

 E o cérebro no chão corre espargido;

Os membros rasga, e lhes devora tudo,

Fibra, entranha, osso mole ou meduloso,

Qual faminto leão: chorando as palmas,

Em desespero e grita, a Jove alçamos.

 Pleno de humanas carnes o amplo ventre,

Leite bebe o Ciclope a grandes sorvos,

E entre as ovelhas na caverna estira-se”

Essa passagem do livro IX da Odisseia, mostra claramente a repulsa que os gregos tinham pelos povos que eles chamavam de BÁRBAROS. A palavra BÁRBARO vem do latim barbarus e essa do grego bárbaros. Para os gregos os povos que não falavam o mesmo idioma que eles, que falavam uma espécie de “bar bar bar” (o nosso blá blá blá), de balbuciar, como crianças, eram bárbaros. Quem não falava grego era bárbaro. Mas havia outra coisa que os gregos usavam para classificar os povos vizinhos: a COMIDA. Quem não comia como eles era também considerado bárbaro. 

Mas o que comiam os gregos dos períodos heroico e clássico? O ideal grego era o consumo de produtos que passavam por processos civilizatórios, culturalmente transformados. Para eles o símbolo máximo de civilização era a agricultura e não a simples coleta de produtos na floresta. O consumo de produtos animais sem essa transformação cultural também não era aceito: comer carne que não fosse antes ritualmente ofertada aos deuses, tomar vinho sem antes diluí-lo com água ou tomar leite puro, eram considerados atos próprios aos bárbaros. Uma pessoa civilizada, membro da sociedade grega, consumia cereais, vinho diluído nas proporções corretas para cada ocasião e carne em pouca quantidade e somente após a oferenda necessária ter sido entregue aos deuses. Ou seja, para os gregos um produto colhido ou usado diretamente da natureza ou de um animal, como o leite cru, não era aceitável como alimento para um civilizado. E durante muito tempo o consumo de carnes passou a ser associados com selvageria. Isso durou até o fim do Império Romano, que por conveniência se ensina nos cursos de História Antiga como sendo o ano de 476 ACE, quando o imperador romano Romulus Augustulus foi forçado a abdicar pelo líder de guerra germânico, o ‘bárbaro’ Odoacro. Um comedor de pão é deposto por um comedor de carne assada. É claro que a história não é tão simples ou simplista assim, mas de alguma forma a ideia de que os comedores de carne eram bárbaros continuou por muito tempo fazendo parte dessa visão de mundo mediterrânea. 

Aliás, foi naquele período, o Greco-Romano, que nasceu o conceito de DIETA MEDITERRÂNEA. Mesmo que o termo tenha sido cunhado só no século 20, os povos do Mediterrâneo desde tempos imemoriais consumiam uma dieta que tinha alguns traços em comum: cereais, vinho e azeite de oliva, frutas, verduras e legumes, pescado e frutos do mar e outros produtos de origem animal apenas em pequena quantidade. Os cereais eram consumidos geralmente em sopas ou papas, o famoso PULS dos antigos Romanos. PULS deu origem à polenta, que era geralmente feita de cevada ou outros cereais menos nobres que o trigo. Só quando o Novo Mundo (Américas) foi descoberto é que o milho, originário do México, foi usado para a polenta que hoje conhecemos no Brasil. Aliás, todos os povos do Mediterrâneo tinham e ainda têm a sua “polenta” ou algum outro tipo de cereal cozido. Ao ser assado, o cereal passava a ter ainda maior simbolismo: convertia-se no pão, o símbolo máximo da civilização e transformação cultural de um ingrediente em alimento. 

Esses três alimentos formavam a chamada TRÍADE MEDITERRÂNEA: PÃO, VINHO E AZEITE. Esses 3 alimentos eram tão importantes que acabam sendo usados simbolicamente em 3 das religiões da região: no Cristianismo, na religião Ortodoxa e na Judaica. Na religião Católica, por exemplo, o momento mais importante da celebração da missa é a transmutação do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo. O azeite de oliva é abençoado e transforma-se no óleo do crisma, dos enfermos (para a extrema-unção) e dos catecúmenos. 

A importância desses 3 produtos da agricultura do Mediterrâneo como alimento ficou tão marcada no inconsciente coletivo que até hoje os católicos ao fazerem a sua principal oração não pedem aos céus que o maná caia gratuitamente dos céus, mas sim ‘O PÃO NOSSO DE CADA DIA NOS DAI HOJE.

Fato interessante, foi também nessa sociedade grega aonde surgiu o primeiro movimento vegetariano do Ocidente: os PITAGÓRICOS. No Oriente já havia um movimento contrário ao consumo da carne (mas não dos produtos derivados dos animais, como os laticínios por exemplo). A Índia foi talvez o berço do movimento vegetariano e alguns autores cogitam que Pitágoras tenha viajado até a Índia e Egito e nesses países tomou conhecimento dessas filosofias. Filosofia ou ética? Pitágoras, o mesmo que quase todos lembramos pelo famoso teorema da matemática, não deixou textos escritos sobre o vegetarianismo ou sobre sua visão filosófica. O que temos hoje é fruto de escritos bem posteriores à sua morte e quanto mais distante da época em que ele viveu, mais as ideias de Pitágoras ficam envolvidas em sombras de mistério. Mas tudo indica que naquele período a questão do consumo ou não de carnes era muito mais filosófica que ética, ou seja, quando se pregava o não consumo de carnes isso não era necessariamente para preservar a vida dos animais ou por combate à crueldade. Os Pitagóricos, novamente segundo alguns autores, acreditavam na METEMPSICOSE ou REINCARNAÇÃO DAS ALMAS. Para eles a alma de um humano poderia após a morte encarnar em um animal. Assim, matar um animal seria como matar um humano. Outros mencionam a questão da elevação espiritual, uma busca dos Pitagóricos em serem mais semelhantes aos deuses. Os deuses Olímpicos alimentavam-se de néctar e ambrosia e não de carnes. Assim, para eles o não consumo de carne poderia ser uma forma de mostrar uma elevação espiritual. Mas o que tudo indica é que a questão de ÉTICA ANIMAL não era o ponto principal defendido pelos Pitagóricos. 

Outro ponto interessante é que Pitágoras e seu grupo de seguidores pertenciam às mais nobres famílias da sociedade grega da época. Justamente essas eram as famílias que tinham condições materiais para comprar animais, enviá-los ao abate sacrificial e em seguida consumir a carne ou distribuí-la nos famosos banquetes abertos. Esses grandes banquetes, abertos a todos os cidadãos gregos (homens, nascidos na Grécia e livres), era uma forma de se conseguir respeito político e social e deles dependia em grande parte o fato de um cidadão ser ou não eleito para os tão almejados cargos públicos. Nada muito diferente dos grandes ‘barbecues’ ainda realizados em alguns estados americanos, como o Texas, nas épocas de campanha eleitoral … Ou seja, esses jovens pitagóricos poderiam comer carne se quisessem. A grande questão talvez aqui seja: por quê tendo todas as condições financeiras para fazê-lo, esses jovens deixavam de consumir carne e eram até mesmo motivo de chacotas de autores satíricos da época? Talvez eles tivessem realmente essa aspiração de ser melhores, mais puros e mais próximos aos deuses. Ou seria também porque eles queriam se diferenciar do resto da sociedade?

Algo inegável é que tanto na Índia quanto entre os Pitagóricos havia os animais continuaram a ser usados como animais de carga, para trabalhos no campo, como produtores de lã, leite e ovos e como oferendas. Ou seja, só a questão do bem estar animal não responde completamente à questão de porque eles abandonaram o consumo de carne. Especula-se que na Índia os Brahmins, também pessoas do topo da escala social, deixaram de consumir carnes para indicar ao restante da população que eram de fato melhores que os demais e por isso mereciam continuar detendo o poder. Até bem pouco tempo na Índia os Brahmins eram a casta dominante … ou seja, trocaram a carne pelo poder. 

Mais um ponto interessante para se entender o nascimento dessas correntes vegetarianas através dos tempos é notar que até hoje elas sempre começam em alguns nichos da sociedade, em geral os mais elevados tanto econômica quanto cultural ou politicamente. Na China por exemplo, a maioria dos camponeses eram e ainda são praticamente vegetarianos, mas não por escolha e sim por questões econômicas. Idem nas sociedades pré-hispânicas, como as Aztecas por exemplo. Ao contrário de se conformarem com uma dieta vegetariana, essas classes mais desfavorecidas anseiam comer mais produtos de origem animal e é isso que invariavelmente acontece quando os países passam de subdesenvolvidos a emergentes. É exatamente isso que estamos vendo na China e na Índia e que vimos também acontecer no Brasil. 

Mas algo aconteceu e a Europa viveu uma enorme transformação: de uma cultura mediterrânea, onde o consumo de carne sem estar ligada a um sacrifício era considerado algo bárbaro, para uma Europa Carnívora. A dieta mediterrânea era e é considera equilibrada, nutricionalmente perfeita e sadia. Ela é simples, sazonal, sustentável, sem grandes artifícios culinários, composta basicamente de produtos de origem vegetal (cereais, leguminosas, frutas, nozes, verduras, azeite de oliva e vinho) com alguma proteína animal (laticínios, peixes e frutos do mar e carnes esporadicamente).  Então, se essa dieta mediterrânea era tão boa, como foi que ela passou a segundo plano e a Europa se transformou em um espaço gastronômico CARNÍVORO, do qual hoje estamos tentando sair por questões ecológicas e de saúde? O que aconteceu para que em que tão pouco tempo a Europa – ou pelo menos as classes altas europeias – mudassem drasticamente de regime alimentar? 

Isso será tema de uma próxima discussão e novamente veremos o debate entre distinção social, religião, medicina, filosofia e consumo de carnes. Então, aguardo os comentários e perguntas de vocês e espero encontrar a todos novamente para discutirmos um pouco mais da importância das Invasões Bárbaras e da Igreja Católica na formação da nova dieta europeia e no surgimento da EUROPA CARNÍVORA. 

Autora: Sandra Mian

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